Dizia Francis Bacon que “a audácia é má cumpridora de promessas”.
O audacioso Estado Social brasileiro, desde sempre e mais acentuadamente a partir da Carta Constitucional de 1988, prometeu o que sabia impossível de cumprir.
Para pagar a conta do Estado gourmet, no qual o subsistema político (mas não só ele, é bom que se diga) se alegra em distribuir favores e benesses que se multiplicam em todas as direções, faz-se de tudo, menos o que deve ser feito.
Daí, faltando dinheiro até para a conta do hospital, fica fácil criar um ambiente socialmente hostil para os que não transitam pelo conduto certo (o inimigo, do modelo schmittiano), sobrando espaço para que apareçam os tipos retratados por Boris Pasternak, como o inescrupuloso Victor Komarovsky, o sujeito que possui enorme poder no regime czarista, mas que surpreendentemente (para nós, incautos) o mantém e aumenta com os comunistas russos.
O problema de não sabermos claramente que país queremos e podemos ser (um capitalismo que não se propõe a resolver as desigualdades elementares ou um socialismo “mágico”, ineficiente e corrupto, que não produz o suficiente para pagar as dívidas), é que assim vamos deixando (muitas) vítimas pelo caminho. E os empresários (os verdadeiros, os que geram riqueza, renda, empregos e correm riscos, não os fraudadores dolosos, os que pertencem às quadrilhas de sonegadores) são ordinariamente os escolhidos para representarem o papel de defensores das causas erradas, como o Dr. Stockmann, da peça de Ibsen.
Tratando assim nossos próprios cidadãos, estamos perdendo aderência social, até porque, como disse Tácito, “quando a antipatia prevalece contra o governo, ações boas e ruins ofendem do mesmo modo”.
E isso se reflete no sempre delicado tema da tributação, desde a nebulosa e intrincada legislação (veja-se, por exemplo, a profusão da soft law entre nós), até a interpretação dada pelo Fisco e pelo Estado-Juiz aos comandos normativos.
A instabilidade acerca do alcance do “fato gerador” (e das infinitas obrigações acessórias) transforma o lícito em ilícito, o empresário em devedor, o contribuinte em réu.
De acordo com dados do Banco Mundial, no ano de 1988 (aquele, da Constituição Social), possuíamos uma carga tributária equivalente a 22,4% do PIB. Como empobrecemos nestes últimos anos, em 2015, aumentamos essa conta para 36,42% do PIB. Em contrapartida, a qualidade dos serviços públicos tornou-se inadjetivável.[1] No Japão, nos Estados Unidos da América e na Suíça, por exemplo, esse peso é significativamente menor (17,6%, 26,9% e 29,4% do PIB, respectivamente).
Conforme a mesma instituição (BM), nos países desenvolvidos gastam-se, em média, 500 horas por ano para entregar o tributo ao caixa do Estado (as obrigações acessórias que permitem ao Fisco controlar o lançamento tributário). No Brasil, esse tempo é 5 vezes maior, ou seja, 2.600 horas/ano, fazendo com que quase 2% do total da receita das empresas seja consumido no cumprimento das obrigações secundárias/acessórias. Em resumo, nossa ineficácia é letal à competitividade, fazendo com que tropeçamos nas próprias pernas!
No mundo moderno, a palavra de ordem é facilitar a vida das pessoas, para que tenhamos a oportunidade de aproveitar o que a tecnologia nos deu de mais precioso: o tempo.
E o Estado, em quase todas as oportunidades que intervém em nossas vidas, com sua burocracia asfixiante, nos toma o tempo que não poderá nos devolver, encarecendo as trocas (numa leitura assumidamente AED), impondo sacrifícios sabidamente inúteis à sociedade.
Veja-se o que ocorreu com o conceito de “planejamento tributário”, aquela conhecida técnica (lícita) que visa evitar a incidência do imposto ou diminuir o valor a ser pago.
Num primeiro momento, o da legalidade/tipicidade, havia plena liberdade organizacional da empresa. Nessa fase, como afirmado pelo Prof. Ives Gandra, o tributo era tido como “norma de rejeição social”, exceto naquelas hipóteses de simulação.
Seguiu-se, então, a fase de combate da fraude à lei, ao abuso de direito, chegando-se a discutir acerca da “ausência de propósito negocial” (a “deformação das formas jurídicas”, dos alemães, encaixa-se aqui, segundo alguns).
O estágio em que nos encontramos (terceira fase do planejamento tributário), traçando um paralelo possível, equivale àquele da “responsabilidade civil objetiva agravada”, que prescinde da culpa do réu e até, por fim, do próprio nexo causal. Aqui, contenta-se o Fisco (e boa parte da jurisprudência também) com a simples constatação de “capacidade contributiva”, sendo a posição fundamentada no princípio da isonomia (sic). E, em profusão, utilizam-se argumentos “ad terrorem“.
Chega o Estado a argumentar, inclusive, quando se trata de recuperação judicial, que ela (a recuperação judicial) “se tornará verdadeiro instrumento de planejamento tributário, possibilitando acertos entre as empresas e seus credores particulares para que os créditos destes sejam satisfeitos prioritariamente, “esquecendo” os créditos públicos”.[2]
De fato, é confortável argumentar em favor da sociedade, do coletivo (sic), arrimando-se em princípios genéricos e moralmente indiscutíveis (igualdade, justiça, dignidade), mesmo que substancialmente vazios de conteúdo!
Assim, sob a influência do Direito Social, passou-se a exigir a eficácia dos atos negociais perante o Fisco. É ele quem definirá o que é ato simulado, se houve fraude à lei ou abuso do direito, se houve ou não motivação e propósito negocial anulando, para fins tributários, negócios legítimos realizados pelos contribuintes.
Perceba-se a curiosa assimetria promovida pelo sistema, especialmente no que se refere aos créditos. Quando se trata do Estado a cobrar, utiliza-se ele de ágeis expedientes judiciais, como a cautelar fiscal e a execução fiscal, com seus instrumentos excepcionais (BacenJud, InfoJud, RenaJud etc). Porém, quando as posições se invertem, cabe ao cidadão satisfazer seus créditos pelo tortuoso caminho dos precatórios! A mesma assimetria se verifica quando da “interpretação da legislação tributária”. Isenções, por exemplo, na dicção do CTN, devem ser obrigatoriamente interpretadas de forma literal e, portanto, restritiva. O contrário não é verdadeiro, porém. Quando se tributa e se aplica todo o peso estatal na análise dos negócios dos contribuintes (despersonificação, preços de transferência etc.), não há limites à avidez fiscal: interpretação extensiva, cláusulas gerais e conceitos indeterminados são utilizados à larga, definindo o que se quiser definir (abuso de direito, boa-fé, intenção negocial etc.).
Parece-nos evidente, nesse cipoal espinhoso, a presença de certa confusão conceitual, quebrando-se a linearidade do discurso justificador da invasão estatal em nosso patrimônio. Por isso, propomos a leitura desses fenômenos a partir doutras geografias semânticas. Em suma, é hora de recolocar as coisas no devido lugar!
Para tanto, façamos uma primeira pergunta: mantém-se, no Direito atual, a relação de subordinação entre princípio e exceção? E na sequência, perquire-se: quais os princípios que informam e legitimam a atividade de nosso Estado?
Soa ainda inquestionável a subordinação da exceção à regra, ao princípio. A livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, CF), a liberdade (artigo 5º, caput, CF), a propriedade (artigo 5º, caput, CF) e a propriedade privada (artigo 170, CF, observada sua função social), princípios explícitos estampados na Carta Republicana, também fundamentam a existência do Estado brasileiro. Só se legitima (constitucionalmente) a invasão ao nosso patrimônio, suspendendo a incidência de tais princípios maiores (livre iniciativa, liberdade, propriedade e propriedade privada com função social), se a exceção vier prevista na mesma Carta Maior. Mesmo nesses casos, porém, não se poderá negar sua natureza de “exceção ao princípio”.
Pode-se privar um cidadão de sua liberdade, colocando-o na cadeia? Sim, nas hipóteses legais, lidas estritamente (exceção), pois a regra é a liberdade. Pode-se desapropriar bem particular? Sim, mas somente nos casos arrolados (exceção), em observância estrita da lei, pois a regra é a preservação da propriedade privada. Pode-se regulamentar a atividade profissional? A resposta também é afirmativa, mas desde que se justifique a limitação (exceção), pois a regra (o princípio) é a livre iniciativa.
O tributo é uma das exceções a esses princípios, e é assim que deve ser lido no e pelo sistema, pois a Constituição não pode ser interpretada em “tiras” (Eros Grau).
Admitida a relação de subordinação (princípio-exceção), é legítimo exigir-se que as exceções, em toda a sua extensão, venham expressas, vedada sua ampliação por analogia e, principalmente, sem controle legislativo!
Por isso, mostra-se inconcebível faça a “jurisprudência” administrativa ou judicial incidir o tributo com o olhar do Direito Social, baseada na existência de capacidade contributiva! Não há falar em “função social da empresa” para fins tributários, e qualquer tentativa de transformar o quadrado em círculo, a exceção em regra, enfrentará resistência lógica e constitucional.
A interpretação extensiva da norma de incidência algumas vezes praticada pela Administração Pública, implicando no afastamento da licitude do planejamento tributário, mostra-se flagrantemente inconstitucional, porque amplia o âmbito da ilicitude, baseada em julgamentos morais (boa-fé, intenção negocial, abuso do direito) não autorizados pela lei (nem pelo sistema).
Já agora se mostra oportuna uma segunda série de indagações: há relação hierárquica entre “direito” e “interesse”? A arrecadação tributária possui status de direito fundamental, existencial, ou diretamente ligado à dignidade da pessoa humana?
A resposta é negativa, evidentemente, por mais que os próceres da moralidade insistam no contrário. O crédito tributário, e ninguém está propondo a retirada do seu merecido destaque, resulta de atividade estatal importantíssima, que se destina a promover, a.e., bem-estar coletivo, a construção de estradas, escolas, hospitais, prédios públicos. Mas o instituto possui status de “interesse”, não de direito fundamental. E não adianta vir com interpretações sociológico-Luhmannianas ou procedimentalistas-Habermasianas, forçando o raciocínio pela porta dos fundos.
“Interesses” não podem se sobrepor a “direitos” e ninguém, exercendo seu direito, nos limites da Constituição, pratica ato ilícito, menos ainda ilícito tributário que, amiúde, transforma-se em ilícito penal, colocando em risco a liberdade do cidadão e sua credibilidade perante a sociedade, sua família. Só quem experimentou um processo judicial dessa magnitude pode avaliar os efeitos deletérios de uma tal acusação.
Aliás, se o argumento da primazia do interesse do Estado (que, para estes outros, se confunde com bem público, da coletividade) vale para justificar as decisões restritivas à atividade empresária, apontando o contribuinte como “sonegador” (autor de crime contra a ordem tributária, para ser mais atual), também é ele válido para as relações entre empresa – consumidor, ramo do Direito Público com igual densidade e dimensão.
Seguindo essa linha, deverá a empresa, sempre, fazer o negócio mais vantajoso para o consumidor, sob risco de incidir nas penas previstas no Código de Defesa do Consumidor pois, do contrário, estará agindo com abuso de direito.
O bom Direito transformou-se, com o Direito Social, em “direito-função”, cumprindo missão metajurídica, puramente ética e de (discutível) conveniência social.
Noutro exemplo, observe-se o enorme déficit habitacional brasileiro. De acordo com a Carta Maior, trata-se a moradia de direito fundamental social (artigo 6º, caput, CF). Se “vale-tudo” em nome dos direitos da sociedade, da coletividade (do Direito Social), e utilizando a mesma justificativa empregada pelos “fiscalistas-ortodoxos”, como permitir os milhares de imóveis que são habitados por seus moradores somente no verão, enquanto milhões de famílias encontram-se sem moradia digna? Não se mostra lídimo utilizar igual raciocínio para desapropriar os imóveis ociosos alegando necessidade ou utilidade pública, ou pior, “interesse social”?
Lamentavelmente, “esperanças há muitas, mas não para nós” (Kafka), até porque o Estado brasileiro perdeu (ou nunca desenvolveu) a noção de unicidade e se transformou numa besta disfuncional, num verdadeiro Estado Quasímodo, num monstrengo que não presta serviços adequados à população, mas gasta muito (e mal) para realizar escolhas equivocadas e improdutivas.
Parece, enfim, que não entendemos a gravidade de maltratarmos os contribuintes (de fato e de direito) da maneira que estamos fazendo, cidadãos brasileiros que ainda acreditam no trabalho, no risco, na recompensa e no mérito como formas humanas e justas de construção de um país verdadeiramente de iguais (iguais em liberdade e, portanto, iguais em oportunidades).
Notas
[1] Por exemplo, segundo a revista Isto É, edição de 20/07/2016, p. 19, “o País volta a ser trágico destaque mundial como um dos pontos no qual mais se dissemina o vírus HIV” (..) respondendo, sozinho, “por mais de 40% das novas infecções na América Latina”, conforme relatório divulgado semana passada (julho/2016) pela ONU. [2] STJ, REsp 1551355, DJe 10/09/2015.